terça-feira, 11 de setembro de 2007

O escritor torna dizível o que não se sabia dizer

Dos homens de letras que escrevem para jornais, somente uns poucos – eminentemente um Carlos Heitor Cony, um João Ubaldo – conservam ainda as características de escritores e não se rebaixam à condição de publicitários e cabos eleitorais. Tão raro e contrastante é o autêntico escritor em comparação com estes últimos, que o próprio termo escritor, usado abusivamente para designá-los, acaba por se reduzir a uma figura de linguagem, aplicável a qualquer atividade que não tenha com a arte de escrever senão a comunidade de instrumento, a linguagem, mesmo quando a empregue com a menos literária das finalidades, que é a de lisonjear os baixos sentimentos políticos da massa mediante a repetição de slogans, cacoetes e frases feitas.
O que define o escritor é justamente a capacidade – ou pelo menos o esforço – de transpor em palavras a experiência autêntica do “verbo interior”, aquela fala muda que, segundo Santo Tomás, vem do coração, compreendido em sua acepção simbólica de núcleo da consciência, de centro vivo da individualidade moral.
Na maior parte das pessoas, a expressão em palavras vem de um estrato mais superficial, verbalizando apenas aquilo que já veio meio pronto das recordações de conversas ouvidas ontem ou do noticiário matutino. O conversador ordinário troca palavras por palavras. O escritor transforma em palavra aquilo que ainda não é palavra e que já não é mais pura sensação corpórea: a forma inteligível apreendida in statu nascendi, na fonte mesma do conhecimento intuitivo.
A tão louvada ou execrada – mas raramente compreendida – individualidade do estilo provém exatamente disto: do caráter originário e autêntico do verbo interior transmutado em exterior. Nesse sentido, um escritor nada “cria”, mas “encontra”: encontra dentro de si, em estado fugaz e nebuloso, uma idéia latente, que a conversão em palavra torna patente – até para ele mesmo. Se algo o escritor inventa, é no sentido latino de invenire: descobrir. Daí que, nele, a verbalização tenha aquele poder curativo e revigorante que o homem comum só vem a conhecer em raros momentos de descarga confessional. A verdadeira escrita literária é uma tomada de consciência, uma conquista de si – e é individual precisamente por isso e por nada mais.
Por não compreenderem isso (e como o compreenderiam, não sendo eles próprios escritores e sim conversadores vulgares, embora de uma vulgaridade acadêmica?), muitos teóricos aplicam de maneira estereotipada, rígida e inadequada a distinção, em si perfeitamente válida, da fala comum e da fala literária: e acabam negando que ela exista, por não encontrarem provas dela no recenseamento quantitativo dos giros de estilo, quando na verdade ela não pode ser encontrada na linguagem já exteriorizada e pronta, mas apenas no ato em que esta brota do verbum mentis, ou verbum cordis, ato que precisamente os procedimentos estatísticos são os menos capacitados a apreender.
O escritor, portanto, se escreve de maneira individualizada, não é porque assim o exija a convenção do seu ofício, mas porque, se escrever de outra maneira, não estará falando desde dentro, desde a fonte das intuições, mas desde o registro consolidado das idéias comuns, já ditas e reditas e necessitadas apenas de aprendizado, não de descoberta.
Com isso, voltamos ao velho Quintiliano, segundo o qual, se você sabe o que quer dizer, sabe como dizê-lo. O problema está justamente nesse “quer”. O que o escritor tenta fazer é dar voz a um querer-dizer que ainda não é um dizer e que só por meio dele se transformará em dizer; ao passo que a conversação corrente se constitui no comércio de bens já incorporados a esse patrimônio.
Sim, a função essencial do escritor é tornar dizível o que ninguém, nem ele próprio, sabia dizer. O problema todo está nesse “o quê”: se ele nada ouve dentro de si, se seu coração está mudo, ele nada dirá, ou dirá apenas aquilo que pode ser dito pelo conversador banal.
A verdadeira dificuldade do ofício literário, não obstante todos os formalismos e estruturalismos e desconstrucionismos, está pois no bom e velho problema do “conteúdo”. Só “tem o que dizer” aquele que ouviu o verbum cordis e não o deixou tombar no esquecimento; ao passo que a conversação corrente – a linguagem da mídia e da política, por exemplo – tem de ignorar necessariamente esse momento interior, para assegurar a rápida associação de palavras e valores, palavras e reações, palavras e sentimentos.
Mas o verbum cordis é ao mesmo tempo pré-verbal e supra-verbal. Ele ainda não é expressão socialmente cristalizada, mas já é presença de uma inteligência superior, superior mesmo aos talentos discursivos do escritor, que não são senão servos dessa voz interna e instrumentos de sua exteriorização social. Verbalmente tosca e informe, a voz interior é eideticamente límpida e intelectualmente suprema: é nela que se dá o ato propriamente dito do conhecer. O resto é esforço físico, associação de idéias ou consulta ao dicionário.
O critério de distinção do literário e do não-literário não é portanto externo, quantitativo, redutível a estatísticas de giros de linguagem. É interior e baseado no autoconhecimento. Só o leitor que no ato de ler consiga efetivar esse autoconhecimento pode distinguir o literário do não-literário. Não é impossível tornar essa distinção um critério cientificamente válido, mas só pela mediação de uma fenomenologia do verbum cordis. Eis porque é mais fácil reconhecê-la na prática do que formalizá-la em conceitos científicos.
Mas, para quem é capaz de realizá-la, ela não somente é clara e distinta, mas também se incorpora de tal modo ao aparato perceptivo individual que se torna como que um novo sentido corporal: o “gosto literário” – algo tão inapreensível desde fora quanto fácil de reconhecer desde dentro.
Tudo isso concorre para que a literatura, escrita ou lida, se transforme num teste, talvez o mais rigoroso, para diferenciar a sinceridade do fingimento. Como bem viu Fernando Pessoa, ninguém é tão pouco fingido como esse fingidor de segundo grau que é o poeta: para fingir literariamente, é preciso estar “perto do coração selvagem”, é preciso não mentir para si, é preciso dar voz ao verbum cordis.
Isso é absolutamente impossível quando se quer obter do leitor uma reação prática imediata, como se dá no caso da propaganda política. A retórica política dirige-se ao “cidadão”, um papel social, não à individualidade concreta. Ela exige a repressão dos sentimentos contraditórios, o massacre da complexidade interior, a compreensão de tudo na fórmula schmittiana do amigo e do inimigo, que se traduz no voto, no aplauso, na vaia, no protesto público. Ela exige que, para ser politicamente coerente, o homem, às vezes, suprima metade do que percebe.
Daí que a retórica política, por mais bela, nunca seja literatura autêntica. Ela tem fundo falso necessariamente. O escrito político só se torna literatura quando se ergue à complexidade da prova dialética, quando já é, um pouco, filosofia. Mas mesmo aí há limites. Algo de incontornavelmente desagradável aparece mesmo nos mais límpidos momentos da prosa de Cícero: sempre suspeitamos que ele não crê totalmente no que diz. Isso acontece porque ele não quer apenas nos persuadir de uma idéia, mas nos induzir a uma atitude política concreta. Quando voltada à política prática, a retórica nunca deixa de ser uma arte de suscitar reações epidérmicas.
Eis a razão pela qual a literatura nunca se deu bem com o compromisso político ou com a simples paixão eleitoral do momento. A politização de todas as esferas da conversação nacional eliminou quase que por completo a possibilidade da expressão literária nos grandes jornais e revistas.
Olavo de Carvalho