Percebo que o céu já não está mais totalmente negro. Parece que lhe surgiu um azul bem escuro, quase um anil, o qual me acalma de todas as minhas divagações sombrias que me visitam o pensamento. Abro a janela do quarto e ainda consigo ver a Dalva solitária estrela, que brilha, ainda com um brilho tímido, parecendo-me observar por um instante, curiosa, com ar de espiã pra cima da minha janela. Vejo um vulto preto sobrevoando a varanda da casa, algo pequeno, emitindo uns sons agudos. Você já deve ter sacado o que é. Morcegos. Tenho a impressão de que eles querem dizer algo a mim, talvez queiram fazer amizade comigo. Pouco tempo depois que isso se passa, uma coruja branca emite seu 'chiado' pedante no jardim.
Neste exato momento, olho novamente pro céu. A estrela não brilha mais, acho mesmo que até já desapareceu por completo. Deve ser esta a minha hora de escrever.O céu está cada vez mais claro e o azul já perdeu todo o seu tom de cordialidade, mostrando-me algo sem vida e sem expressão. O branco das nuvens recobertas se escancara para a janela aberta.Surpreendo-me ao perceber 'os primeiros cantos', não do Gonçalves Dias e nem dos sabiás, mas dos pardais suburbanos que cantam a mediocridade passageira da vida.Recuso-me a descrever o som da batida da porta do vizinho, que acaba de chegar sei lá de que prostíbulo, arruinando o som agudo dos passarinhos, banalizados pelo ordinário aspecto de não possuir beleza infinita.Parece que a noite já se foi e não me sinto mais à vontade agora, vejo que a sacada do meu quarto está repleta de olhos gordos me secando e querendo roubar o que de mim é valioso. Mas que olhos gordos são esses? - Sei lá, talvez seja o próprio dia que se aproxima com os raios mal-educados, que não fazem distinção e não medem a intensidade com que ferem os olhos mesquinhos daqueles solitários amantes da escuridão.Minha noite passou depressa e não tive, ao menos, tempo de me despedir de forma solene, pois o dia vem me despindo e deixando à mostra minhas vergonhas.Não quero mais ser a cobaia dum sistema repugnante, quero deixar algo de útil, algo que algum dia estará sobre as calçadas do centro da cidade, sendo pisado e às vezes chutado, algo que preencherá o vazio dum menino, ou a puberdade duma menina, algo que despertará a sede de conhecimento adormecida num adulto, que tem sua atenção vinculada para a capa vermelha dum livro convidativo, que ocupa mais um espaço na calçada, talvez. Este livro, porém, valerá cinco reais, como muitos, e será de minha autoria.Quero produzir algo supremo em concisão, algo conciso em supremacia, algo maravilhoso em produção e algo produtivo em maravilha. Dizem coisas absurdas sobre escritores renomados.(?) Quero então saudar os roubadores de livros, os roubadores de conhecimento e aqueles que, para adquirir boa viagem, fazem traseira no ônibus da arte, mas sem ofender o entendimento, digo, os que fazem traseira no sentido de burlar os valores comuns, para viajarem de graça num mundo de descobertas gentis.Faz duas horas que acordei, às 3:35, e estou no ápice da atividade pensativa. Sinto-me cansado, por um momento, sinto que tudo o que fiz não valeu à pena. Abro as páginas de Markus Zusak e percebo a magia de ser algo produtivo para a humanidade, ou para mim mesmo e para as não muitas pessoas que amo.Algo estranho ao meu corpo me vem à mente. Nunca conheci esse algo misterioso, que me visita todas as noites, mas que, sem ao menos ver a sua cara, satisfaço-me em sentir apenas a presença do seu cheiro.Tudo que me vem agora é, talvez, banal e sem sentido. Sinto vontade até de rir. Mas também me sinto triste, pois não fui presenteado com o nascer do sol, que o faz jocosamente atrás de minha casa.Abro a última folha do meu livro prático de francês e me deparo com um título interessante e ao mesmo tempo estranho: A dane de Eufodithe. Essas palavras soam rasantes pelo meu quarto, muito embora este não tenha escutado a mínima entonação de minha voz. Nunca soube quem escrevera isto e quem se atrelou a esse mistério abrasivo.Não sou nenhum tipo de lingüista, mas arrisco-me em tentar estudar o significado seco destas palavras insones. Dane deve ter alguma correlação com um nome feminino, talvez de uma musa que habitava uma região longínqua. Eufodithe me soa como Afrodite, a deusa grega da beleza. É interessante notar a ligação entre essas duas palavras desconhecidas: Dane lembra o nome de uma musa antiga e Eufodithe, que me traz à Afrodite, tem um prefixo Eu, que significa verdadeiro. Talvez Dane seja realmente a verdadeira musa e deusa da mitologia grega, humanizada em Eufodithe, e Afrodite, sendo um mito mal-contado, nunca existiu.Ou talvez esse título pedante não tenha sentido nenhum, sendo apenas algo escrito por um doido varrido da sociedade, em mais uma de suas noites mal-dormidas. Resta-me saber: quem é este louco?Aproveito o livro prático de francês e tento fazer algumas aulas, mas o máximo que consigo é me deparar com a beleza destas palavras, destas letras, e do desenho das frases, como este:La meilleure façon de visiter Paris c'est à pied, mais si vous voulez aller d'un endroit à un autre rapidement, faites comme les Parisiens: prenez le métro.
sábado, 30 de setembro de 2006
terça-feira, 26 de setembro de 2006
Amar e ser amadoAmar e ser amado!
Com que anelo
Com quanto ardor este adorado sonho
Acalentei em meu delírio ardente
Por essas doces noites de desveio!
Ser amado por ti, o teu alento
A bafejar-me a abrasadora frente!
E, teus olhos mirar meu pensamento,
P'ra tão puro e celeste sentimento:
Ver nossas vidas quais dois mansos rios,
Juntos, juntos perderem-se no oceano
Beijar teus dedos em delírio insano
Nossas almas unidas, nosso alento,
Confundindo também, amante - amado
-Como um anjo feliz... que pensamento
Castro Alves
Com que anelo
Com quanto ardor este adorado sonho
Acalentei em meu delírio ardente
Por essas doces noites de desveio!
Ser amado por ti, o teu alento
A bafejar-me a abrasadora frente!
E, teus olhos mirar meu pensamento,
P'ra tão puro e celeste sentimento:
Ver nossas vidas quais dois mansos rios,
Juntos, juntos perderem-se no oceano
Beijar teus dedos em delírio insano
Nossas almas unidas, nosso alento,
Confundindo também, amante - amado
-Como um anjo feliz... que pensamento
Castro Alves
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